quinta-feira, setembro 28, 2006

Lágrima no canto do olho

Camarada de luta em jornadas jornalísticas, José Coimbra reflecte neste texto um pouco daquilo que perpassa pela alma de muitos que não encontram outro remédio senão viver neste país.
Vai na íntegra, com abraço solidário à mistura.

Vamos ao Circo!


São três da tarde e estou deveras chateado com a vida, não só com a minha, mas com a deste país meio-vivo para não dizer quase morto. Quem escuta a nossa classe política e lhe dá ouvidos, e dar ouvidos nem sempre é sinónimo de pensar no que se ouve, até pode considerar que a crise começa a ser coisa do passado. O presente e o futuro trarão mais oportunidades de emprego, salários mais elevados, melhores condições de vida, um Estado social mais justo. O primeiro – ministro fala disto à boca cheia, com a certeza de quem está a construir uma política estratégica para os próximos 30 anos, do alto da sua arrogância e do seu autismo, ignorando a realidade vivida por milhares de portugueses. Entristece-se, diz, sempre que uma empresa fecha as portas e compreende o desespero dos trabalhadores, ao mesmo tempo que os administradores dessas mesmas empresas põem os seus porsches a funcionar e acenam na derradeira despedida. Entristece-o, o despedimento de milhares de trabalhadores mas discursa com um toque que deixa transparecer que a vida é mesmo assim. Fala seguro na posição de quem não tem que gerir um orçamento familiar com um ou dois ordenados mínimos, quando assim é, ou na incerteza da instabilidade laboral. E isto até lhe dá força para continuar a desenvolver políticas que apostam sobretudo na entrega de quase tudo ao sector privado. Deveria ser motivo, também, para os trabalhadores (que deixaram de o ser) ganharem força para reorganizar suas vidas. Como? Sempre podem fazer umas plásticas e fazerem-se passar por trabalhadores novos e activos, cheios de pujança para começarem do zero; podem forjar diplomas e em vez de terem o 9º ano ou menos de escolaridade, apresentaram-se como licenciados e promissores quadros superiores. Senhor primeiro-ministro, muitas dessas pessoas têm entre quarenta e cinquenta anos; senhor primeiro-ministro, muitas dessas pessoas têm uma baixa escolaridade; senhor primeiro-ministro, muitas desses trabalhadores não vão conseguir outro trabalho na vida e os que conseguirem farão uns biscates sem pagar os respectivos impostos.

E os jornalistas, em particular, e os órgãos de comunicação social em geral, claro está, cumprem os desígnios do Exmo. Sr. primeiro, não fossem arranjar complicações de maior a quem parece estar sempre a gritar com um megafone colado à boca, bem no meio da arena do circo da propaganda política governamental. Para os media, o que importa é captar o momento em que o ex-operário fabril grita e chora, condição fundamental para apimentar a abertura do telejornal. A resposta da administração, na maior parte das vezes, já sabem qual é: “ninguém da administração se mostrou disponível para prestar declarações”. E como é sempre a mesma resposta, já nem vale a pena tentar a pergunta. Um minuto e meio de choro e gritaria é o suficiente para a máquina mediática converter audiências em publicidade e publicidade em lucro. Digamos que os media, neste espectáculo circense com várias arenas em cena simultaneamente, são como os anões que aparecem quando menos se espera e que, na maioria das vezes, entretêm mais que os palhaços. São desastrados e nunca fazem nada correcto a não ser entreter com o que fazem de errado.

E neste circo somos todos espectadores, ou pelo menos todos fazemos figura de espectadores, autorizados a bater palmas quando as manobras circenses correm bem. Mesmo que alguém caia do trapézio, batemos palmas, porque o que conta é a intenção, é o esforço da tentativa. E já que o governo se está a esforçar tanto, para quê denegrir a sua imagem mesmo quando alguma coisa corre mal? O melhor é apertarmos a bola vermelha que temos no lugar do nariz e bater palmas como as focas domesticadas.

E porquê chatearmo-nos com o que quer que seja. Senão vejamos: está a aproximar-se o fim-de-semana, vai haver futebol e o domingo, se deus quiser, apresentar-se-á soalheiro para podemos ir todos até às lavagens automáticas de automóveis puxar o lustro ao nosso tuning artilhado até ao chassi. Depois enfiamo-nos num centro comercial, o espaço público privilegiado do povo português, para discutir a coisa mais importante da vida e que se prende com a satisfação da primeira de todas as necessidades: vamos almoçar ao McDonalds ou vamos para algo mais saudável, tipo casa das sandes?

Não vale a pena os cerca de 700 mil desempregados manifestarem-se. Não vale a pena interrogarmo-nos porque é que o governo legitima todas as suas mudanças políticas através dos media. Não vale a pena manifestarmo-nos por salários iguais aos de outros países membros da União Europeia quando sabemos que iremos pagar taxas moderadoras na saúde equivalentes às praticadas na Alemanha. Não vale a pena dizermos aos nossos filhos que a vida é mais do que uma praxe e uma queima-das-fitas e um jogo de vídeo ou o último modelo automóvel. De nada vale a pena se a alma de um povo é pequena e habilmente manipulada por lobbies político-partidários. E, por vezes, a alma é difícil de serenar quando há muito ruído. Por isso, continuaremos a ir ao circo.
JC


Já agora, só uma achega que não está no outro texto sobre Portalegre: Além da Finos e da Johnson, há a situação da centenária Robinson que está pela rua da amargura e prestes a fechar a qualquer momento. Serão mais 300 (à volta disso).
Haveria também, claro está, de avançar para uma ampla discussão sobre a actuação dos media nesta e noutras situações. Infelizmente continua a ser mais fácil mostrar e falar com o desgraçado da lágrima ao canto do olho.

2 comentários:

Anónimo disse...

E, infelizmente, quando o desgraçado não chora (por mil e um motivos, mais que não seja por até as lágrimas já estarem secas) a notícia é criticada e deixa de ter significado para os "chefões" de Lisboa, que acham que conhecem o país, lá do alto dos gabinetes dos prédios da capital.
Rita

caronte disse...

...ninguém vai ao circo para conhecer a vida nos bastidores, a vida como ela é...
os palhaços querem-se pintados, patéticos... o homem atrás da máscara é só mais um ... e só mais um não interessa!