segunda-feira, março 12, 2007

Heróis da mudança


A crítica não tem sido macia para com os autores do documentário “Brava Dança” onde se mostram os caminhos trilhados desde os primórdios de 80 pela banda Heróis do Mar.
Não tive, ainda, oportunidade de ver o filme. Não vou perdê-lo.
Os Heróis do Mar são parte íntima do meu crescimento. Musical. Estético. Artístico. A primeira lufada de ar fresco verdadeiramente séria sentida pela primeira geração da Liberdade a que pertenço. O primeiro arrogo, pós Abril, de uma linha cultural, uma corrente de pensamento, filosofia de um futuro que tardava em despontar num Portugal ainda gravemente ferido, com memória na ditadura, limitado pelo PREC, em busca de um caminho direito rumo à democracia.

Na transição, os Heróis do Mar foram o verdadeiro processo revolucionário juntando à acutilância e inovação musical um espírito desempoeirado, assente numa estética visual que confrontou um país comezinho, brando e de bons costumes, com alguns dos seus traumas e que por isso se apressou a retirar conclusões precipitadas e aranjar estranhas – curiosas, até - conotações políticas à banda, impondo, inclusive, rótulos de teor nacionalista.
A partir dos Heróis do Mar nada mais foi igual. Nós, os gladiadores dos anos 80, passámos a ver neles uma referência. O enquadramento futuro. A bitola da qualidade.
Um concerto dos Heróis era um acto de puro espectáculo. Cénico. Estético. Musical. Era teatro. Representação de alto nível. Do guarda-roupa ao cenário. O êxtase chegou com o hino ao “Amor”, provavelmente o primeiro grande hit da pop em Portugal.

Talvez a falta destas imagens, para quem viu, viveu, sentiu, vibrou, com a brava dança dos Heróis, suscite críticas algo negativas ao documentário de José Pinheiro e Jorge Pires.
A moda agora é olhar para os eigthies como a década da criação, da revolução cultural, ideológica. Mudança radical dos costumes. Até dos usos.
Os Heróis do Mar simbolizam essa real alteração “climática” no país.

E o documentário, mesmo que o não traduza – na voz opinativa dos críticos – tem o mérito de cortar com a rotina e mostrar um formato muito pouco usual nas nossas salas de projecção. Só por si, marca a vitória do documentário.
E mostra que os Heróis do Mar podem ainda quebrar barreiras.

P.S. – Voltarei quando vir o doc

“O Assunto é…”




Subiu a passo largo os degraus azuis do Sanches de Miranda. Sentou-se a meu lado. Era dia de bola. Os seus olhos claros, brilhantes, já vinham de baixo dirigindo-me o longo e habitual cumprimento. Estendeu-me efusivamente a mão. Soltou um “brasileiro dum cabrão”, a única frase soada em português perfeito. Sem sotaque. Anos antes confessara-lhe ser esse o meu sentimento quando o via entrar estúdio adentro. E lhe dizia “fala devagar senão não te percebo”.



Nessa tarde de domingo, na bancada, antecedendo um qualquer jogo do Juventude, ofereceu-me um livro. O Seu livro. “Sua Excelência o Futebol, Excrecência”. Vinha autografado. Para mim. Um olhar profundo sobre a realidade do futebol mundial.


No raiar dos anos 90, crise de contratos, despedido de um clube qualquer, chegou à rádio. Sem qualquer experiência. Fui os seus olhos na descoberta da “menina”. Ao contrário de mim, ele nunca mais a largou.

Nos estúdios da então denominada TSF Alentejo, mais tarde Diana FM, passámos horas à conversa. “O Assunto é Futebol”. Ele era uma verdadeira enciclopédia futebolística. Ninguém me ensinou mais sobre futebol. O título desta crónica identificava as nossas gravações na rádio.


Bebemos copos. Falámos muito. Contou-me histórias. Sobre a carreira, curta, de futebolista no Brasil – não recordo o clube. Verdadeira estrela precocemente apagada por irreversível lesão num joelho. O primeiro dia em Évora, trazido pelo empresário, Cié, que homenageou no baptismo do primeiro filho. O primeiro contrato com o Lusitano…


Um largo interregno. Pensei num regresso definitivo ao Brasil. Esteve, afinal, nos Estados Unidos onde montou uma “clínica” sobre futebol.

E voltou de novo à Évora da sua paixão. Voltámos a cruzar-nos. Até há dois ou três anos. Talvez menos, não recordo.

Dele, lembro-me bem. Tez escura. Carapinha curta. Olhos brilhantes. Sempre brilhantes. Ternos. Mas de olhar matreiro! Sorriso amigo. Disparava palavras. Rápidas. Metralhadas. Com sotaque. Quase imperceptíveis.

As pernas arcadas davam-lhe o ar de estrela da bola.

Não há coincidências...

Manhã de sábado. Depois de uma semana em Lisboa, levanto-me cedo para respirar Alentejo. Parto para o campo. Inacreditavelmente, levo, debaixo do braço, uma bola de futebol. Há quatro anos que não jogo futebol. Só nos sonhos salto para o estádio e brinco com a bola. Este sábado é diferente. Passo a manhã sozinho. A jogar à bola. Sei lá porquê.

Dou toques. Simulo jogadas. Finto Canavaro. Dou baile a Cristiano. Marco um golo. Dois. “Hat-trick”. Sozinho. Eu sozinho… sou a equipa da vitória. Dos aplausos. Saio do estádio em ombros. A multidão grita. O meu nome ecoa pelo estádio imaginário.


Manhã de segunda feira. Na redacção procuro avidamente as novidades da terra. Instrumento de trabalho obrigatório, chego ao Notícias Alentejo. O choque: “Morreu Leonildo Vilanova”. Um olhar de espanto. Um esgar de dor. Pontapé fundo no estômago.

A notícia, crua, relata uma “doença prolongada”. Diz que morreu no sábado… no Brasil. Não consigo segurar as lágrimas.

Não há mesmo coincidências. Nunca acreditei nelas. Sei hoje, segunda-feira, que no sábado não joguei sozinho. Fiz o último jogo ao lado de Leonildo Vilanova.


Camarada: um dia, na rádio dos sonhos, voltaremos ao éter para fazer a jogada da vitória. Gostava de te ver, amigo… Saravá!