segunda-feira, março 12, 2007

“O Assunto é…”




Subiu a passo largo os degraus azuis do Sanches de Miranda. Sentou-se a meu lado. Era dia de bola. Os seus olhos claros, brilhantes, já vinham de baixo dirigindo-me o longo e habitual cumprimento. Estendeu-me efusivamente a mão. Soltou um “brasileiro dum cabrão”, a única frase soada em português perfeito. Sem sotaque. Anos antes confessara-lhe ser esse o meu sentimento quando o via entrar estúdio adentro. E lhe dizia “fala devagar senão não te percebo”.



Nessa tarde de domingo, na bancada, antecedendo um qualquer jogo do Juventude, ofereceu-me um livro. O Seu livro. “Sua Excelência o Futebol, Excrecência”. Vinha autografado. Para mim. Um olhar profundo sobre a realidade do futebol mundial.


No raiar dos anos 90, crise de contratos, despedido de um clube qualquer, chegou à rádio. Sem qualquer experiência. Fui os seus olhos na descoberta da “menina”. Ao contrário de mim, ele nunca mais a largou.

Nos estúdios da então denominada TSF Alentejo, mais tarde Diana FM, passámos horas à conversa. “O Assunto é Futebol”. Ele era uma verdadeira enciclopédia futebolística. Ninguém me ensinou mais sobre futebol. O título desta crónica identificava as nossas gravações na rádio.


Bebemos copos. Falámos muito. Contou-me histórias. Sobre a carreira, curta, de futebolista no Brasil – não recordo o clube. Verdadeira estrela precocemente apagada por irreversível lesão num joelho. O primeiro dia em Évora, trazido pelo empresário, Cié, que homenageou no baptismo do primeiro filho. O primeiro contrato com o Lusitano…


Um largo interregno. Pensei num regresso definitivo ao Brasil. Esteve, afinal, nos Estados Unidos onde montou uma “clínica” sobre futebol.

E voltou de novo à Évora da sua paixão. Voltámos a cruzar-nos. Até há dois ou três anos. Talvez menos, não recordo.

Dele, lembro-me bem. Tez escura. Carapinha curta. Olhos brilhantes. Sempre brilhantes. Ternos. Mas de olhar matreiro! Sorriso amigo. Disparava palavras. Rápidas. Metralhadas. Com sotaque. Quase imperceptíveis.

As pernas arcadas davam-lhe o ar de estrela da bola.

Não há coincidências...

Manhã de sábado. Depois de uma semana em Lisboa, levanto-me cedo para respirar Alentejo. Parto para o campo. Inacreditavelmente, levo, debaixo do braço, uma bola de futebol. Há quatro anos que não jogo futebol. Só nos sonhos salto para o estádio e brinco com a bola. Este sábado é diferente. Passo a manhã sozinho. A jogar à bola. Sei lá porquê.

Dou toques. Simulo jogadas. Finto Canavaro. Dou baile a Cristiano. Marco um golo. Dois. “Hat-trick”. Sozinho. Eu sozinho… sou a equipa da vitória. Dos aplausos. Saio do estádio em ombros. A multidão grita. O meu nome ecoa pelo estádio imaginário.


Manhã de segunda feira. Na redacção procuro avidamente as novidades da terra. Instrumento de trabalho obrigatório, chego ao Notícias Alentejo. O choque: “Morreu Leonildo Vilanova”. Um olhar de espanto. Um esgar de dor. Pontapé fundo no estômago.

A notícia, crua, relata uma “doença prolongada”. Diz que morreu no sábado… no Brasil. Não consigo segurar as lágrimas.

Não há mesmo coincidências. Nunca acreditei nelas. Sei hoje, segunda-feira, que no sábado não joguei sozinho. Fiz o último jogo ao lado de Leonildo Vilanova.


Camarada: um dia, na rádio dos sonhos, voltaremos ao éter para fazer a jogada da vitória. Gostava de te ver, amigo… Saravá!

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida é um conjunto de sabores agridoces.
O Agro é forte. Muito forte.
Quando recebo um doce, desconfio! Também não acredito em meia dúzia de coincidências!

O texto é brilhante!